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O Júri e a Polémica

"Havia um júri com posições políticas muito diferenciadas. Foi uma ideia-chave, para mostrar que todos podiam conviver, para lá das divergências de opinião", recorda Raul Solnado.

A selecção dos membros do júri foi ainda mais laboriosa do que a dos candidatos, até porque eles iam ficar 26 semanas consecutivas, o que implicava, além do compromisso de disponibilidade pessoal, resistência psicológica para suportar a polémica pública que necessariamente as suas decisões haviam de provocar.
Desse júri histórico, imitado mas nunca igualado, restam dois sobreviventes: Maria João Seixas e Raul Calado. Dos três outros, Maria Leonor, Paulo Renato e Luís Sttau Monteiro, permanece a saudosa memória - no sentido exacto da palavra, pois, infelizmente, dessa presença televisiva não há rasto nos arquivos da RTP. Numa das inúmeras histerias de controlo financeiro de que a história da tv pública é fértil, alguém se lembrou de economizar nas cassetes vídeo e desgravou os programas antigos para as poder reutilizar sabe-se lá em quê.

"A Cornélia deve ser dos únicos programas de serviço público que a RTP fez. Era lúdico e pedagógico ao mesmo tempo e quem o viu sabe que assim foi" - afirma Raul Calado.

O júri foi a âncora do programa, sobre ele recaíam não só as expectativas dos concorrentes, mas dos milhões de espectadores que a ele assistiam. Através dos comentários, da pontuação, da exposição a que se submetiam, os seus membros tornaram-se no "bode expiatório" dos cronistas, colunistas, analistas, jornalistas e de tudo o mais que era a comunicação social. As decisões de cada um dos jurados era escalpelizada ao ínfimo pormenor, à procura do que saltava à vista: que pensavam pela sua cabeça e, por isso, expressavam pontos de vista diferentes.

Na versão brasileira do programa, à semelhança dos combates de luta livre, para estabelecer um clima de polémica junto do público, um dos membros do júri vestia a pele do "mau", enquanto outro era o "bonzinho". Solnado ensaiou a fórmula e chegou a aliciar Paulo Renato, actor profissional, para desempenhar esse papel de "mau", o que o deliciou. Mas ao fim de duas ou três sessões, Renato foi dizer ao animador do programa que era um desempenho impossível - a dinâmica criada pelos concorrentes, pelo público e pelos outros membros do júri tornava supérflua essa intervenção. Por isso, ele, Paulo Renato, ia passar a ser "ele próprio".

Maria João Seixas recorda que eram os temas de sociedade que mais a motivavam. Por isso, sempre que um concorrente sugeria questões como as do aborto, prostituição e guerra colonial, temas tabus no debate público, ela valorizava-os. Um dia, uma senhora distinta interpelou-a na rua para lhe dizer: "Você traiu-nos."
Raul Calado resume deste modo o papel do júri: "Conseguimos provar que era possível criar uma opinião. Sobre o mesmo assunto era possível assistir à expressão de cinco opiniões diversas e até de uma sexta, que era a de quem nos ouvia, a do espectador."

 Público, 29/09/2002

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"A visita da Cornelia", Raul Calado, Maria João Seixas, Luís Sttau Monteiro, Maria Leonor e Paulo Renato, 11/07/1977. MANUEL MOURA / LUSA PRT LISBON LUSA © 2007 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

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