Cornélia: a segunda geração
O concurso que teve mais êxito na televisão portuguesa vai regressar à RTP, muito em breve. Nascerá, então, A Filha da Cornélia. Para concorrer com concursos «que são uma chatice». Mas, na política, nada é como em 1977. «Isto agora está mais calmo». No dia em que a Quatro estreia a revelação dos concursos em Espanha, o primeiro concurso a dedicar-se ao insólito e a exigir provas de criatividade, regressa-se à memória do mais criativo de todos, nos ecrãs portugueses. A Visita da Cornélia. Enquanto a filha dela não chega.
Fialho Gouveia e Raul Solnado -- a direcção da RTP com eles -- decidiram pegar na fórmula de A Visita da Cornélia e actualizá-la em versão anos 90. A Filha da Cornélia está quase a aparecer, tendo no júri o produtor Thilo Krassman, as jornalistas Catarina Portas e Inês Serra Lopes e o pintor/encenador/figurinista/egiptólogo Paulo Guilherme d'Eça Leal.
Talvez o regresso não seja apenas mérito da vaca-mãe. Talvez porque um mínimo de senso obrigue a verificar, como faz Fernando Assis Pacheco, que «os concursos de hoje são uma merda». Poderia chamar-se-lhes «fraquinhos ou outra coisa, mas é esse o termo». Quando muito, permite-se um eufemismo implacável: «Como se diz em Coimbra, `são abaixo-de-cu-de-cão e vários furos abaixo de polícia'» [sem ofensa; citam-se, vagamente, as graças do Código da Praxe da cidade].
Fernando Assis Pacheco, escritor, jornalista da "Visão" e, noutras vidas, «participante involuntário» em A Visita da Cornélia, recorda as «sete semanas de loucura» em que ocupou o pódio do concurso. Cornélia à parte, as suas funções de chefe-de-redacção do "Diário de Lisboa" obrigavam-no a não almoçar à segunda-feira. «Ia a correr do trabalho para o Teatro Villaret». E tudo tinha começado por cinco postais, enviados à traição pela cunhada de Assis Pacheco, Carla Ruella Ramos, em nome dele, para A Visita da Cornélia.
«Telefonou-me o Raul Solnado. Fiquei azul e depois verde. Mas fui, porque não queria ser antipático para a minha cunhada». E, além disso, «havia a coisa inolvidável que era o público. Para lá das luzes de palco e da cortina de escuridão, adivinhava-se o público». O facto de os seus cupões terem sido seleccionados não dava garantia de acesso imediato à Visita da Cornélia. Havia ainda que passar «por uma prova de desembaraço musical e cultural». Assis Pacheco passou, até porque «já tinha algum palco e alguma televisão».
O modelo da filha
Com A Filha da Cornélia não é provável que alguém seja sujeito a estas desventuras, porque o modelo é diferente. Como explica Fialho Gouveia -- agora o apresentador, em vez de Raul Solnado -- a selecção faz-se por cassete. «Não há sorteio de postais nem nada. As pessoas enviam uma cassete com a gravação do que se propõem fazer nas provas de canto, interpretação musical e imitação. A escolha não é por sorte, é por mérito».
Na passagem do concurso de mãe para filha, nada se perde, pouco se cria, tudo se transforma. Raul Solnado, que antes era o apresentador, vai aparecer num momento escolhido de cada edição de A Filha da Cornélia, «numa rubrica que deverá ser de humor». Os concorrentes não são individuais (com um convidado), são equipas de três pessoas, com «éne» convidados no Cinema Europa. Quanto a provas, há as obrigatórias -- representação, questionários, texto e prova livre -- e as de opção (podem ser realizadas por convidados da equipa) -- canto, interpretação musical, imitação e dança.
O contexto em que se desenvolve a nova Cornélia -- aquilo que em 1977 estava do lado de fora do Villaret e em 1994 não se encontra no exterior do Cinema Europa -- é que mudou, em definitivo. «Isto agora está mais calmo». Filho Gouveia quer dizer que «isto agora» já não é a luta encarniçada entre esquerda e direita como era; já não é a última ressaca do Verão Quente e das eleições para a Presidência da República; já não é a época de chumbo da rede bombista e dos encapotados da MDLP-ELP; já não é o tempo em que, diz o arquitecto Keil do Amaral, «punha-se com bastante facilidade uma bomba debaixo dos carros das pessoas de quem não se gostava...»
A memória da mãe
Keil do Amaral (universalmente «Pitum»), arquitecto que trabalha actualmente com a Câmara de Loures, foi outro dos participantes na Visita da Cornélia. Recorda como alguns concorrentes foram convidados a fazer dois espectáculos no Porto -- tal a fama! --, já depois de terminado o concurso: «Andávamos com guarda-costas». É que A Visita da Cornélia decorreu «num contexto político diferente. Existia esse confronto [esquerda-direita] e de que maneira! Ainda havia coisas fortes para dizer e isso ajudou à atenção do público».
O arquitecto acrescenta que «muitas vezes havia só ideologia pura nas claques dos concorrentes. Nada mais estava em jogo». Aliás, A Filha da Cornélia vai dar prémios substanciais em dinheiro (há uma «tarifa» para os pontos obtidos), mas em 1977 concorria-se «por um berbequim, ou na melhor das hipóteses uma viagem a Londres. Lá na Câmara de Loures há um senhor simpático que já ganhou dois automóveis nos concursos de agora».
Na Cornélia, houve embates «políticos» históricos. Fernando Assis Pacheco recorda «um incidente desagradável comigo e com o Gonçalo Lucena, um mano-a-mano». O jornalista explica que «na `Gente' do Expresso, anunciava-se o embate com o Gonçalo Lucena como `O PCP contra o CDS'. Fiquei com pele de galinha. Deve ter sido o Marcelo Rebelo de Sousa a escrever». Recorda, depois, «como só a muito custo consegui arranjar, nessa sessão, uma dúzia de lugares para os meus apoiantes na plateia», porque «o resto da lotação [que é exactamente de 444 lugares] tinha sido comprado pela empresa em que trabalhava na altura Gonçalo Lucena".
As conotações políticas eram mais que muitas. Fialho Gouveia explica que se estendiam até aos membros do júri, «e dizia-se às vezes que o elemento 'x' tinha dado a pontuação 'y' porque era de esquerda e o concorrente era de direita ou vice-versa». Fernando Assis Pacheco, que esteve no concurso durante sete semanas, inventou uma diversão. «Levámos um boi, a que chamámos o Tenente-Cornélio, um bicho malvado e mal educado, sobretudo com as hierarquias militares». Para seu espanto, Assis Pacheco leu em «O Dia», pouco depois, uma manchete em que se dava a entender que o comandante de uma região militar se preparava para emitir uma nota contra o concurso, ofendido com o boi-Cornélio.
Em 1977, A Visita da Cornélia tinha, apesar de tudo o que lhe carregaram aos ombros, a intenção de «proporcionar uma festa de confraternização para os espectadores». Espera-se muito da Filha da Cornélia. Como diz Keil do Amaral, «os concursos agora não têm piada nenhuma porque predomina a sorte. Faz falta um concurso de competência». O arquitecto duvida que, por bom que seja, A Filha da Cornélia deixe margem para a «espontaneidade e originalidade dos concorrentes. No primeiro, fomos nós que instituímos as rábulas enquanto ocupávamos o pódio».
Pedro Rosa Mendes, Público, 03/02/1994
FDC
O concurso que teve mais êxito na televisão portuguesa vai regressar à RTP, muito em breve. Nascerá, então, A Filha da Cornélia. Para concorrer com concursos «que são uma chatice». Mas, na política, nada é como em 1977. «Isto agora está mais calmo». No dia em que a Quatro estreia a revelação dos concursos em Espanha, o primeiro concurso a dedicar-se ao insólito e a exigir provas de criatividade, regressa-se à memória do mais criativo de todos, nos ecrãs portugueses. A Visita da Cornélia. Enquanto a filha dela não chega.
Fialho Gouveia e Raul Solnado -- a direcção da RTP com eles -- decidiram pegar na fórmula de A Visita da Cornélia e actualizá-la em versão anos 90. A Filha da Cornélia está quase a aparecer, tendo no júri o produtor Thilo Krassman, as jornalistas Catarina Portas e Inês Serra Lopes e o pintor/encenador/figurinista/egiptólogo Paulo Guilherme d'Eça Leal.
Talvez o regresso não seja apenas mérito da vaca-mãe. Talvez porque um mínimo de senso obrigue a verificar, como faz Fernando Assis Pacheco, que «os concursos de hoje são uma merda». Poderia chamar-se-lhes «fraquinhos ou outra coisa, mas é esse o termo». Quando muito, permite-se um eufemismo implacável: «Como se diz em Coimbra, `são abaixo-de-cu-de-cão e vários furos abaixo de polícia'» [sem ofensa; citam-se, vagamente, as graças do Código da Praxe da cidade].
Fernando Assis Pacheco, escritor, jornalista da "Visão" e, noutras vidas, «participante involuntário» em A Visita da Cornélia, recorda as «sete semanas de loucura» em que ocupou o pódio do concurso. Cornélia à parte, as suas funções de chefe-de-redacção do "Diário de Lisboa" obrigavam-no a não almoçar à segunda-feira. «Ia a correr do trabalho para o Teatro Villaret». E tudo tinha começado por cinco postais, enviados à traição pela cunhada de Assis Pacheco, Carla Ruella Ramos, em nome dele, para A Visita da Cornélia.
«Telefonou-me o Raul Solnado. Fiquei azul e depois verde. Mas fui, porque não queria ser antipático para a minha cunhada». E, além disso, «havia a coisa inolvidável que era o público. Para lá das luzes de palco e da cortina de escuridão, adivinhava-se o público». O facto de os seus cupões terem sido seleccionados não dava garantia de acesso imediato à Visita da Cornélia. Havia ainda que passar «por uma prova de desembaraço musical e cultural». Assis Pacheco passou, até porque «já tinha algum palco e alguma televisão».
O modelo da filha
Com A Filha da Cornélia não é provável que alguém seja sujeito a estas desventuras, porque o modelo é diferente. Como explica Fialho Gouveia -- agora o apresentador, em vez de Raul Solnado -- a selecção faz-se por cassete. «Não há sorteio de postais nem nada. As pessoas enviam uma cassete com a gravação do que se propõem fazer nas provas de canto, interpretação musical e imitação. A escolha não é por sorte, é por mérito».
Na passagem do concurso de mãe para filha, nada se perde, pouco se cria, tudo se transforma. Raul Solnado, que antes era o apresentador, vai aparecer num momento escolhido de cada edição de A Filha da Cornélia, «numa rubrica que deverá ser de humor». Os concorrentes não são individuais (com um convidado), são equipas de três pessoas, com «éne» convidados no Cinema Europa. Quanto a provas, há as obrigatórias -- representação, questionários, texto e prova livre -- e as de opção (podem ser realizadas por convidados da equipa) -- canto, interpretação musical, imitação e dança.
O contexto em que se desenvolve a nova Cornélia -- aquilo que em 1977 estava do lado de fora do Villaret e em 1994 não se encontra no exterior do Cinema Europa -- é que mudou, em definitivo. «Isto agora está mais calmo». Filho Gouveia quer dizer que «isto agora» já não é a luta encarniçada entre esquerda e direita como era; já não é a última ressaca do Verão Quente e das eleições para a Presidência da República; já não é a época de chumbo da rede bombista e dos encapotados da MDLP-ELP; já não é o tempo em que, diz o arquitecto Keil do Amaral, «punha-se com bastante facilidade uma bomba debaixo dos carros das pessoas de quem não se gostava...»
A memória da mãe
Keil do Amaral (universalmente «Pitum»), arquitecto que trabalha actualmente com a Câmara de Loures, foi outro dos participantes na Visita da Cornélia. Recorda como alguns concorrentes foram convidados a fazer dois espectáculos no Porto -- tal a fama! --, já depois de terminado o concurso: «Andávamos com guarda-costas». É que A Visita da Cornélia decorreu «num contexto político diferente. Existia esse confronto [esquerda-direita] e de que maneira! Ainda havia coisas fortes para dizer e isso ajudou à atenção do público».
O arquitecto acrescenta que «muitas vezes havia só ideologia pura nas claques dos concorrentes. Nada mais estava em jogo». Aliás, A Filha da Cornélia vai dar prémios substanciais em dinheiro (há uma «tarifa» para os pontos obtidos), mas em 1977 concorria-se «por um berbequim, ou na melhor das hipóteses uma viagem a Londres. Lá na Câmara de Loures há um senhor simpático que já ganhou dois automóveis nos concursos de agora».
Na Cornélia, houve embates «políticos» históricos. Fernando Assis Pacheco recorda «um incidente desagradável comigo e com o Gonçalo Lucena, um mano-a-mano». O jornalista explica que «na `Gente' do Expresso, anunciava-se o embate com o Gonçalo Lucena como `O PCP contra o CDS'. Fiquei com pele de galinha. Deve ter sido o Marcelo Rebelo de Sousa a escrever». Recorda, depois, «como só a muito custo consegui arranjar, nessa sessão, uma dúzia de lugares para os meus apoiantes na plateia», porque «o resto da lotação [que é exactamente de 444 lugares] tinha sido comprado pela empresa em que trabalhava na altura Gonçalo Lucena".
As conotações políticas eram mais que muitas. Fialho Gouveia explica que se estendiam até aos membros do júri, «e dizia-se às vezes que o elemento 'x' tinha dado a pontuação 'y' porque era de esquerda e o concorrente era de direita ou vice-versa». Fernando Assis Pacheco, que esteve no concurso durante sete semanas, inventou uma diversão. «Levámos um boi, a que chamámos o Tenente-Cornélio, um bicho malvado e mal educado, sobretudo com as hierarquias militares». Para seu espanto, Assis Pacheco leu em «O Dia», pouco depois, uma manchete em que se dava a entender que o comandante de uma região militar se preparava para emitir uma nota contra o concurso, ofendido com o boi-Cornélio.
Em 1977, A Visita da Cornélia tinha, apesar de tudo o que lhe carregaram aos ombros, a intenção de «proporcionar uma festa de confraternização para os espectadores». Espera-se muito da Filha da Cornélia. Como diz Keil do Amaral, «os concursos agora não têm piada nenhuma porque predomina a sorte. Faz falta um concurso de competência». O arquitecto duvida que, por bom que seja, A Filha da Cornélia deixe margem para a «espontaneidade e originalidade dos concorrentes. No primeiro, fomos nós que instituímos as rábulas enquanto ocupávamos o pódio».
Pedro Rosa Mendes, Público, 03/02/1994
FDC
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