Foi há 25 anos que a família de Francisco Keil Amaral (Pitum) fez
furor no concurso A Visita da Cornélia, apresentado por Raul Solnado.
Para Pitum, "este foi um período divertidíssimo". Ainda hoje, quando se
deslocam a Lisboa, sentem que são reconhecidos pelas pessoas. Dos
prémios arrecadados, usufruíram de apenas dois: um conjunto de lençóis e
uma viagem de uma semana a Londres. Os restantes reverteram a favor dos
Bombeiros Voluntários de Canas de Senhorim, localidade onde, na altura,
passavam férias. A esta estreia televisiva seguiram-se outras
participações, nos programas Vitinho e A Loja do Mestre André.
Lira Keil nasceu na Madeira, em 1937, "numa família que era uma grande misturada". "A minha mãe era da chamada fina-flor e o meu pai era de uma família muito, muito pobre do Funchal", conta Lira. O pai era "um aventureiro dado às investigações" e a mãe era "dada às culturas", por isso, quando a filha decidiu, aos 16 anos, estudar belas-artes, de imediato a apoiaram. Já em Lisboa, e com o curso tirado, casou com o pintor António Areal, contra a vontade da família. A relação quebrou-se passado nove anos, mas dela nasceram três filhas. Foi com elas que retornou ao Funchal, onde viria a ser guia turística da American Express, percorrendo o circuito entre Espanha, Marrocos e Portugal. Nessa altura, reencontrou um velho colega das belas-artes: Pitum. O arquitecto viajou para a ilha, em trabalho, acompanhado da esposa, a escultora Leonor, e dos três filhos. Lira relembra aqueles tempos: "Ele ia de férias e eu ficava com os três miúdos. Íamos passear e fazer uns programas malucos. Quando eu estava fora, eram eles que ficavam com as minhas miúdas."
Pitum, que guarda no bilhete de identidade o mesmo nome do pai, seguiu-lhe também os traços na arquitectura. A mãe, Maria Keil, galardoada em 1941 com o Prémio Sousa Cardoso, ainda hoje, com 86 anos, continua a pintar. "Ela tem umas ideias malucas. Agora, anda a desenhar uns diabos e começou a escrever uma história: a mãe diabo, o pai diabo e os filhos", refere Pitum, com orgulho sorridente. Olhando para trás, o arquitecto recorda a época em que a mãe foi considerada a renovadora da arte do azulejo, em Portugal: "Os colegas dela achavam que era um disparate, que não era coisa de artistas. Ela lá teimou. Foi ela que fez os azulejos para as estações todas [do metro] e ninguém lhe pagou." As obras do metropolitano, nessa altura, tinham um débil suporte financeiro. Ainda assim, Francisco Keil Amaral (pai) aceitou pôr de pé o projecto.
Após uma década de casamento, Pitum foi surpreendido pela viuvez. Os seus três rapazotes começaram, então, a deixar bilhetinhos debaixo da porta de Lira: "Por que é que não ficas nossa mãe?" E ficou. Entretanto, passaram-se 30 anos de aventura e sobressalto. Foi com o sétimo filho no colo (Leonor), que partiram para Moçambique, como cooperantes ligados às Nações Unidas. O contrato era de dois anos, mas não resistiram e ficaram mais quatro. Pitum trabalhava para a Secretaria de Estado da Cultura, zelando pela preservação dos edifícios da época colonial. Lira leccionava na Escola de Artes Visuais de Maputo.
O bichinho do teatro, alimentado pelo patriarca dos Keil, deu origem à Associação Cultural da Casa Velha, uma "espécie de ninho de actores". Segundo o arquitecto, este grupo foi como um rastilho, que fez eclodir várias companhias teatrais, criando alternativas aos costumeiros filmes indianos e de karaté. A Casa Velha continua erguida, preservando o espírito criativo com que aquela família impregnou a população da capital moçambicana. O agravado ambiente de guerra obrigou-os, entretanto, a comprar o bilhete de volta a Portugal. Mas, se em Moçambique se envolveram numa luta contra as dificuldades, cá, lamenta Pitum, travaram "uma luta contra a mentalidade".
Loures foi o concelho escolhido para o regresso. A par de actividades profissionais na câmara municipal, Lira e Pitum, junto com antigos colegas de faculdade, deram corpo a diversas iniciativas culturais. A exposição "Objectos Metafóricos Contemporâneos" foi um dos exemplos. Em 1994, transferiram-se para o município de Nelas, introduzindo a arquitectura, pela primeira vez, nesta autarquia. Para o interior do país, trouxeram também a vontade de sacudir mentes e abrir portas. Nestes recantos campesinos, "esta coisa da cultura mete medo às pessoas vulgares, porque acham que é uma coisa para grandes entendidos", alude Lira. Mas Pitum e a "bombeira voluntária ou escuteira atrasada" - como já chamaram à sua mulher - fizeram desabrochar, este ano, uma galeria de arte, em Canas de Senhorim, onde já estiveram expostos trabalhos de João Cutileiro e de René Bertholo. A próxima será da autoria de Lira, com memórias de Moçambique, a preto e branco. As noites são, ocasionalmente, reservadas a serões temáticos. Em breve, será a poesia satírica a pairar sobre as Casas do Visconde, espaço construído para a realização de eventos. Na mesma propriedade, prevê-se a abertura de uma casa de chá, onde, por entre livros, se poderão saborear doces caseiros.
Público, 09/07/2001
Lira Keil nasceu na Madeira, em 1937, "numa família que era uma grande misturada". "A minha mãe era da chamada fina-flor e o meu pai era de uma família muito, muito pobre do Funchal", conta Lira. O pai era "um aventureiro dado às investigações" e a mãe era "dada às culturas", por isso, quando a filha decidiu, aos 16 anos, estudar belas-artes, de imediato a apoiaram. Já em Lisboa, e com o curso tirado, casou com o pintor António Areal, contra a vontade da família. A relação quebrou-se passado nove anos, mas dela nasceram três filhas. Foi com elas que retornou ao Funchal, onde viria a ser guia turística da American Express, percorrendo o circuito entre Espanha, Marrocos e Portugal. Nessa altura, reencontrou um velho colega das belas-artes: Pitum. O arquitecto viajou para a ilha, em trabalho, acompanhado da esposa, a escultora Leonor, e dos três filhos. Lira relembra aqueles tempos: "Ele ia de férias e eu ficava com os três miúdos. Íamos passear e fazer uns programas malucos. Quando eu estava fora, eram eles que ficavam com as minhas miúdas."
Pitum, que guarda no bilhete de identidade o mesmo nome do pai, seguiu-lhe também os traços na arquitectura. A mãe, Maria Keil, galardoada em 1941 com o Prémio Sousa Cardoso, ainda hoje, com 86 anos, continua a pintar. "Ela tem umas ideias malucas. Agora, anda a desenhar uns diabos e começou a escrever uma história: a mãe diabo, o pai diabo e os filhos", refere Pitum, com orgulho sorridente. Olhando para trás, o arquitecto recorda a época em que a mãe foi considerada a renovadora da arte do azulejo, em Portugal: "Os colegas dela achavam que era um disparate, que não era coisa de artistas. Ela lá teimou. Foi ela que fez os azulejos para as estações todas [do metro] e ninguém lhe pagou." As obras do metropolitano, nessa altura, tinham um débil suporte financeiro. Ainda assim, Francisco Keil Amaral (pai) aceitou pôr de pé o projecto.
Após uma década de casamento, Pitum foi surpreendido pela viuvez. Os seus três rapazotes começaram, então, a deixar bilhetinhos debaixo da porta de Lira: "Por que é que não ficas nossa mãe?" E ficou. Entretanto, passaram-se 30 anos de aventura e sobressalto. Foi com o sétimo filho no colo (Leonor), que partiram para Moçambique, como cooperantes ligados às Nações Unidas. O contrato era de dois anos, mas não resistiram e ficaram mais quatro. Pitum trabalhava para a Secretaria de Estado da Cultura, zelando pela preservação dos edifícios da época colonial. Lira leccionava na Escola de Artes Visuais de Maputo.
O bichinho do teatro, alimentado pelo patriarca dos Keil, deu origem à Associação Cultural da Casa Velha, uma "espécie de ninho de actores". Segundo o arquitecto, este grupo foi como um rastilho, que fez eclodir várias companhias teatrais, criando alternativas aos costumeiros filmes indianos e de karaté. A Casa Velha continua erguida, preservando o espírito criativo com que aquela família impregnou a população da capital moçambicana. O agravado ambiente de guerra obrigou-os, entretanto, a comprar o bilhete de volta a Portugal. Mas, se em Moçambique se envolveram numa luta contra as dificuldades, cá, lamenta Pitum, travaram "uma luta contra a mentalidade".
Loures foi o concelho escolhido para o regresso. A par de actividades profissionais na câmara municipal, Lira e Pitum, junto com antigos colegas de faculdade, deram corpo a diversas iniciativas culturais. A exposição "Objectos Metafóricos Contemporâneos" foi um dos exemplos. Em 1994, transferiram-se para o município de Nelas, introduzindo a arquitectura, pela primeira vez, nesta autarquia. Para o interior do país, trouxeram também a vontade de sacudir mentes e abrir portas. Nestes recantos campesinos, "esta coisa da cultura mete medo às pessoas vulgares, porque acham que é uma coisa para grandes entendidos", alude Lira. Mas Pitum e a "bombeira voluntária ou escuteira atrasada" - como já chamaram à sua mulher - fizeram desabrochar, este ano, uma galeria de arte, em Canas de Senhorim, onde já estiveram expostos trabalhos de João Cutileiro e de René Bertholo. A próxima será da autoria de Lira, com memórias de Moçambique, a preto e branco. As noites são, ocasionalmente, reservadas a serões temáticos. Em breve, será a poesia satírica a pairar sobre as Casas do Visconde, espaço construído para a realização de eventos. Na mesma propriedade, prevê-se a abertura de uma casa de chá, onde, por entre livros, se poderão saborear doces caseiros.
Público, 09/07/2001
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