Há quem diga, e Raul Solnado corrobora, que sem Fernando Assis
Pacheco a Cornélia não nos teria visitado. Jornalista no "Diário de
Lisboa", "coimbrinha", afamado, poeta reconhecido, estava longe de ser
uma figura anónima nos meios culturais. Por isso, quando o seu nome
surgiu, no primeiro sorteio dos boletins, Solnado teve um sobressalto,
pegou no telefone e ligou-lhe:
- Tu concorreste mesmo?
- Sabes, é a minha cunhada. Ela acha que...
- E tu vens?
- Vou.
Solnado respirou de alívio, a primeira barreira fora ultrapassada. Havia o perigo óbvio de o programa-concurso se ficar pelas récitas de finalistas liceais, ou seja, monótonos serões familiares. De resto, ao longo das 26 emissões, muitas foram as que não saíram desse âmbito.
A primeira sessão lançou o concurso, a tal ponto que o Canal da Crítica, de Mário Castrim, que tinha sérias reservas sobre o formato do programa, designadamente quanto à sua configuração competitiva e às intenções propagandísticas, regista entredentes: "Cumpriu-se, logo no primeiro assalto, aquilo que nesta secção foi já apontado relativamente ao concurso: a sua capacidade para interessar a audiência."
A dupla Assis Pacheco-Carminho Ruella Ramos apontou um rumo, que não mais seria abandonado, reforçado pelo desempenho de um outro par concorrente, Isabel e Diamantino Santos, de Matosinhos, que valeu pela "simpatia e simplicidade", na apreciação de Castrim.
Assis Pacheco trouxe ao programa a exigência intelectual, a par de uma imensa alegria de viver. Ficou célebre a sua capacidade de introduzir a poesia nos momentos mais inesperados, iluminando de sensibilidade provas que pareciam insonsas. Foi o caso da prova de poesia, onde os concorrentes tinham que glosar o mote: "Tomei-lhe o gosto e depois." Daqui fez Assis Pacheco uma quadra que diz o seguinte: "Sem saber que eras vinho// tomei-lhe o gosto. E depois// dóis menos do que me dóis// quando o gosto é poucochinho."
O problema é que ele de modo algum escondia a sua inclinação política de esquerda e isso gerou uma enorme polémica, com grande satisfação dos autores do programa, que se deram conta de ter a aposta ganha. O despique caiu na praça pública, ficando na memória o que se estabeleceu entre o Canal da Crítica, de Mário Castrim, e o "Expresso", de Vasco Pulido Valente e Maria João Avillez, a propósito do confronto entre Assis Pacheco e Gonçalo Lucena, na sexta sessão, que foi para o ar a 11 de Julho. Cada programa era gravado uma semana antes, no Teatro Villaret, com o público a ter que pagar 50$00 pelo bilhete, o que não impedia que os 180 lugares disponíveis estivessem sempre ocupados.
Sabia-se, por isso, que a emissão desse 11/7 ia ser excepcional. Formaram-se claques e dividiram-se as opiniões. Castrim deitou abaixo Lucena: "Pratica ao nível da escola (...). Sabe da mecânica, mas não sabe do segredo. Repete, não inventa" ["Diário de Lisboa" de 12/7/77]. Na edição do "Expresso" desse sábado, 17/7/77, é Maria João Avillez quem desqualifica Assis Pacheco. Trata-o desprimorosamente de "novo herói" e enquadra-o num ambiente pequeno- burguês, onde a mulher cozia meias e as filhas fabricavam marionetas, que o pai depois usava na Cornélia, na prova de teatro.
Gonçalo Lucena perdeu por uma unha negra, mas num volte-face acabou por subir ao pódio. Num gesto teatral, Assis Pacheco entendeu que o lugar estava bem entregue e deixou o programa.
Muitos futuros nomes do espectáculo passaram então pela Cornélia, com destaque para Tó Zé Martinho, que fazia par com a mãe. Mas Lucena estava de pedra e cal, mesmo quando Pitum e Maria Lira fizeram "um excelente serão" na décima sessão, merecendo no "Diário de Lisboa" título de primeira página: "Bisneto de Alfredo Keil levou burlesco à Cornélia."
Até que na 12ª sessão (22/8) apareceu um pequeno barbudo desgrenhado, de olhar tímido, de seu nome José Fanha, que destronou Lucena e relançou a polémica esquerda-direita.
O seu rival foi Rui Guedes e nem mesmo o "glamour" do par dançarino Lucilina-Ninéu Sobreiro conseguiu desfazer a tensão política, que voltou a subir até que na 23ª sessão apareceu Vasco Raimundo. Ele não só desempatou o confronto Fanha/Rui Guedes, como acabou por ocupar o pódio, de onde não mais saiu, até à finalíssima de 28 de Novembro de 1977.
Público, 29/09/2002
imagem
"A visita da Cornelia", 11/07/1977. MANUEL MOURA / LUSA PRT LISBON LUSA © 2007 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.
- Tu concorreste mesmo?
- Sabes, é a minha cunhada. Ela acha que...
- E tu vens?
- Vou.
Solnado respirou de alívio, a primeira barreira fora ultrapassada. Havia o perigo óbvio de o programa-concurso se ficar pelas récitas de finalistas liceais, ou seja, monótonos serões familiares. De resto, ao longo das 26 emissões, muitas foram as que não saíram desse âmbito.
A primeira sessão lançou o concurso, a tal ponto que o Canal da Crítica, de Mário Castrim, que tinha sérias reservas sobre o formato do programa, designadamente quanto à sua configuração competitiva e às intenções propagandísticas, regista entredentes: "Cumpriu-se, logo no primeiro assalto, aquilo que nesta secção foi já apontado relativamente ao concurso: a sua capacidade para interessar a audiência."
A dupla Assis Pacheco-Carminho Ruella Ramos apontou um rumo, que não mais seria abandonado, reforçado pelo desempenho de um outro par concorrente, Isabel e Diamantino Santos, de Matosinhos, que valeu pela "simpatia e simplicidade", na apreciação de Castrim.
Assis Pacheco trouxe ao programa a exigência intelectual, a par de uma imensa alegria de viver. Ficou célebre a sua capacidade de introduzir a poesia nos momentos mais inesperados, iluminando de sensibilidade provas que pareciam insonsas. Foi o caso da prova de poesia, onde os concorrentes tinham que glosar o mote: "Tomei-lhe o gosto e depois." Daqui fez Assis Pacheco uma quadra que diz o seguinte: "Sem saber que eras vinho// tomei-lhe o gosto. E depois// dóis menos do que me dóis// quando o gosto é poucochinho."
O problema é que ele de modo algum escondia a sua inclinação política de esquerda e isso gerou uma enorme polémica, com grande satisfação dos autores do programa, que se deram conta de ter a aposta ganha. O despique caiu na praça pública, ficando na memória o que se estabeleceu entre o Canal da Crítica, de Mário Castrim, e o "Expresso", de Vasco Pulido Valente e Maria João Avillez, a propósito do confronto entre Assis Pacheco e Gonçalo Lucena, na sexta sessão, que foi para o ar a 11 de Julho. Cada programa era gravado uma semana antes, no Teatro Villaret, com o público a ter que pagar 50$00 pelo bilhete, o que não impedia que os 180 lugares disponíveis estivessem sempre ocupados.
Sabia-se, por isso, que a emissão desse 11/7 ia ser excepcional. Formaram-se claques e dividiram-se as opiniões. Castrim deitou abaixo Lucena: "Pratica ao nível da escola (...). Sabe da mecânica, mas não sabe do segredo. Repete, não inventa" ["Diário de Lisboa" de 12/7/77]. Na edição do "Expresso" desse sábado, 17/7/77, é Maria João Avillez quem desqualifica Assis Pacheco. Trata-o desprimorosamente de "novo herói" e enquadra-o num ambiente pequeno- burguês, onde a mulher cozia meias e as filhas fabricavam marionetas, que o pai depois usava na Cornélia, na prova de teatro.
Gonçalo Lucena perdeu por uma unha negra, mas num volte-face acabou por subir ao pódio. Num gesto teatral, Assis Pacheco entendeu que o lugar estava bem entregue e deixou o programa.
Muitos futuros nomes do espectáculo passaram então pela Cornélia, com destaque para Tó Zé Martinho, que fazia par com a mãe. Mas Lucena estava de pedra e cal, mesmo quando Pitum e Maria Lira fizeram "um excelente serão" na décima sessão, merecendo no "Diário de Lisboa" título de primeira página: "Bisneto de Alfredo Keil levou burlesco à Cornélia."
Até que na 12ª sessão (22/8) apareceu um pequeno barbudo desgrenhado, de olhar tímido, de seu nome José Fanha, que destronou Lucena e relançou a polémica esquerda-direita.
O seu rival foi Rui Guedes e nem mesmo o "glamour" do par dançarino Lucilina-Ninéu Sobreiro conseguiu desfazer a tensão política, que voltou a subir até que na 23ª sessão apareceu Vasco Raimundo. Ele não só desempatou o confronto Fanha/Rui Guedes, como acabou por ocupar o pódio, de onde não mais saiu, até à finalíssima de 28 de Novembro de 1977.
Público, 29/09/2002
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"A visita da Cornelia", 11/07/1977. MANUEL MOURA / LUSA PRT LISBON LUSA © 2007 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.
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